A mão da mãe - Morte
A mão da mãe
Tão pequena que era ainda aquela mão de criança e tão fácil de esconder numa mão de mulher!
Era a mão de uma criança, do seu filho, mas era uma parte dela. E os dedos da mãe, dedos suaves e confiantes de mãe, estavam fechados em volta do seu bem mais querido.
— Se não acontecer um milagre… — dissera o médico com um encolher de ombros. E abandonara o quarto.
Os olhos da mãe deslizavam da face exausta e em agonia do rapazinho pousada na almofada para os objectos que a rodeavam, como se tivesse de pedir socorro a estes brinquedos mudos que faziam parte do seu círculo solitário.
No calendário junto à janela brilhava uma fotografia a cores: um esquimó, de cara castanha-dourada, sentado no seu trenó, segurava as rédeas das renas de olhos inteligentes e dos cães polares. Todos pareciam ter uma saúde que a morte nunca viria colher. Ao lado do avião de alumínio reluzente pousado em cima da cómoda, estava o búzio cor-de-rosa onde a criança gostava de encostar o ouvido e escutar o som do mar.
As recordações daquele quarto não eram iguais às que se instalam num quarto de adulto. Neste quarto de criança, não eram memórias. Eram o próprio futuro e o símbolo de mil e uma promessas.
O soldadinho de corda, cuidadosamente pousado na prateleira por cima da cama, já só marchava quando algum amigo de brincadeiras trazia consigo um irmão mais novo.
O menino de oito anos, que já não tinha pai, conseguia ser de uma atenção comovente para com os mais pequenos.
E também o era para com a mãe, tão comovedoramente preocupado. Como se quisesse dizer: nós mantemo-nos unidos e fortes contra o mundo inteiro.
Porém, agora, alguém mais forte do que o próprio mundo vinha exigir os seus direitos.
Mãe!
— Sim, filho.
— Vou morrer?
— Eu estou ao teu lado.
— Mãe, o que é que acontece quando se morre? Vem a morte?
— Quando se morre, a alma dos homens vai para Deus.
— Não. Quero dizer, vem a morte a sério, como está desenhada nos livros? Uma pessoa horrível, só com ossos?
— Não, não, filho! Essa morte não existe, é inventada.
— Mãe, mãe!
— O que é?
— Ali, no armário!
— O quê?
— O lobo, o lobo!
— Calma, calma, filho. És tu a sonhar!
— Mas olha, mãe, que olhos tão vermelhos e selvagens que ele tem!
— Não tenhas medo, filho! Eu seguro a tua mão com força e não te acontece nada.
— O lobo está a aproximar-se cada vez mais! Já está à tua beira!
— Vou fazer festas ao lobo. Vês? Ele não é mau. Quando a mãe lhe faz festas, ele porta-se bem. E agora está a ficar cada vez mais pequeno. Já só está do tamanho de um gatinho. Transformou-se num gatinho amoroso e tem três cores: branco, castanho e preto. Os gatos de três cores são gatos da sorte, sabias. Não ficas contente por termos um gatinho da sorte?
— Sim, mãe. Olha como ele está a levantar as patas. Vá lá, mãe, põe-no à minha beira na cama.
— Olha, filho, o gatinho já está em cima da cama à tua beira. Estou a passar a tua mão pela cabeça dele. Sentes como é macio?
— É! É macio e quente!… Mãe, mãe, ali, no tecto!
— O que é que há no tecto?
— Morcegos! E do tamanho de corvos! São muitos, muitos!
— Não tenhas medo, filho. A mãe sabe a palavra mágica. Mutantur! Mutantur!Agora os morcegos transformaram-se em lindíssimas aves-do-paraíso de longas penas coloridas.
— Mãe, já estamos no Paraíso?
— Sim, filho, estamos no Paraíso e eu vou levar-te pela mão porque quero mostrar-te tudo. Como é verde e aveludado o prado por onde vamos! As árvores estão totalmente brancas e cor-de-rosa com tantas flores. Vêm pousar-nos no braço muitas borboletas grandes e bonitas. À nossa frente uma lebre levantou-se nas patas traseiras e os veados e as gazelas passam a saltar. No Paraíso, sabes, o medo não existe. E tudo o que é bonito existe no Paraíso. Quando queremos voar, só temos de dizer ao cisne do lago. Então ele leva-nos até uma montanha que é um rubi reluzente. E se…
— Mãe, mãe!
— Sim!
— Não podes nunca… nunca… largar… a… minha… mão…!
— Não, filho, nunca, nunca!
— Mãe!
— Filho! Pelo amor de Deus, o que é?… Estás a ouvir-me? Filho! Filho! Foste para o Paraíso… Porque me deixaste com os lobos e com os morcegos?
Josef Guggenmos
SOS-Kinderdorf Caderno Anual, 1996